Racialização
Racialização
Valter Roberto Silvério
Quando digitamos a palavra "racialização", o corretor ortográfico não a reconhece e sugere substituições como "racionalização", "radicalização" ou "parcialização". Isso indica que o termo ainda não está nos dicionários de língua portuguesa. Já nos dicionários de língua inglesa, o uso da palavra pode ser rastreado desde o século XIX. O verbo "racialize" (nos EUA) ou "racialise" (na Inglaterra) significa, em uma tradução livre, “as formas como a linguagem é usada para colonizar, racializar e comercializar o Outro”. O adjetivo "racialized" (EUA) ou "racialised"
(Inglaterra) está relacionado a uma ideologia que diferencia "europeus e Outros". O substantivo "racialização" se refere a processos onde minorias étnicas enfrentaram uma intensa discriminação, com uma hierarquia que coloca a branquitude no topo.
Nas ciências sociais, a racialização começou a ser debatida após a Segunda Guerra Mundial. Nas décadas de 1970, o foco era a "raça"; nos anos 1980, o racismo; e, a partir dos anos 1990, a racialização (Solomos e Back, 1994; Barot e Bird, 2001). Barot e Bird, por exemplo, argumentam que, embora a racialização seja útil para entender essas questões, ainda não resolveu os problemas causados pela ambiguidade do termo "raça" (Banton, 1997).
Após a Segunda Guerra Mundial, houve grandes mudanças globais, acompanhadas por novas formas de regulação social promovidas pela ONU, especialmente pela Unesco, para evitar tragédias como o fascismo e o nazismo. No entanto, a segregação racial nos EUA continuou até 1968, e o apartheid na África do Sul, iniciado em 1948, só terminou em 1994. Muitos movimentos de libertação na Ásia e África influenciaram essas transformações, como a Conferência de Bandung (1955) e os congressos de escritores negros em Paris
(1956) e Roma (1959). Na Europa, a imigração das antigas colônias trouxe debates sobre relações raciais, ligadas a novas formas de racialização. Isso levou ao uso de termos como "novo racismo" e "racismo cultural" para descrever as mudanças nas ideias e práticas raciais.
Banton (1967) e Miles (1982, 1986) discutem como o termo "raça" é cientificamente inválido e defendem que a análise deveria focar no racismo. Miles argumenta que a raça é uma construção política e que os processos de racialização estruturam as relações sociais, baseando-se nas características biológicas humanas para definir grupos sociais diferenciados (Miles, 1989). Porém, essas diferenciações raciais sempre se cruzam com a classe social, o que limita a compreensão do racismo e das relações racializadas.
Nos Estados Unidos, Winant (1994) defende que a raça é um conceito fluido, constantemente transformado por conflitos políticos e moldando identidades e estruturas sociais. Ele usa o conceito de "formação racial" para explicar como os significados raciais evoluem e afetam a vida das pessoas. No Reino Unido, o Centro de Estudos Culturais Contemporâneos (CCCS) criticou as visões tradicionais sobre raça e enfatizou a autonomia do racismo em relação a outras relações sociais. Stuart Hall, um dos principais teóricos do CCCS, argumentava que o racismo não pode ser explicado apenas pelas relações econômicas e políticas, mas possui uma autonomia própria dentro da sociedade (Hall, 1980).
A perspectiva do CCCS (Centro de Estudos Culturais Contemporâneos) influenciou obras como "The Empire Strikes Back" (1982), que trouxe contribuições importantes para o entendimento da raça como uma construção política aberta. Gilroy (1987) sugeriu que identidades coletivas, como a de "negro", são moldadas pela raça e a localidade, e são meios poderosos de coordenação de ações e solidariedade.
1. Quando falamos sobre a "problemática racial", as críticas geralmente recaem sobre o uso do termo "raça", que é considerado cientificamente inválido. Apesar disso, sociólogos frequentemente evitam lidar diretamente com essa invalidez nas suas teorias. A proposta de substituir "raça" por
"processo de racialização" é mais útil do ponto de vista sociológico, pois permite que o debate sobre "raça" não fique abstrato e distante das experiências reais das pessoas que vivenciam o racismo. Na prática, o racismo é uma realidade concreta e não relativa; as sociologias que se baseiam no conceito de "raça" fizeram pouco para resolver essa questão, especialmente em relação à terminologia utilizada.
2. O conceito de racialização tem sido utilizado para apontar processos de transformação cultural. Ou seja, a racialização indica que a ideia de "raça" não é fixa e imutável, mas é constantemente reinventada e reinterpretada, especialmente em contextos culturais. Como sugerido por Miles (1989), não existe uma ideologia única e estática sobre a raça. Ao contrário, o que vemos são várias maneiras pelas quais as ideias e estruturas sociais são racializadas. Embora Miles enfatize a relação entre raça e classe social, ele reconhece que isso não é a única maneira de entender a racialização, abrindo espaço para outras abordagens que consideram aspectos culturais e simbólicos além das meras estruturas econômicas.
3. Fanon, assim como Banton e Miles, argumenta que a racialização foi um processo europeu usado para justificar a negação de outras culturas e a dominação colonial. Fanon, porém, vai além ao abordar a resistência à racialização, sugerindo que essa resistência, em alguns casos, pode ser violenta, pois foi moldada pela experiência brutal do colonialismo. Em "Os Condenados da Terra", Fanon discute como a violência do colonialismo provoca uma resposta igualmente violenta. Além disso, ele destaca que a racialização não é apenas um processo social; ela também envolve o corpo e a psique. Em Pele Negra, Máscaras Brancas, Fanon explora como o corpo racializado e as experiências psicológicas da racialização são fundamentais para compreender o impacto do racismo, tanto no passado quanto no presente. Ele argumenta que a percepção racializada do corpo é uma forma contínua de opressão que afeta profundamente a identidade e as relações sociais. Um exemplo marcante está no relato em que Fanon descreve a experiência de ser interpelado como "um negro", e como isso afeta sua percepção de si mesmo:
“Olha, um negro!” Fanon escreve: Eu era responsável ao mesmo tempo por meu corpo, minha raça, por meus ancestrais. Eu me submeti a um exame objetivo, descobri minha negritude, minhas características étnicas; e fui espancado por tom-toms, canibalismo, deficiência intelectual, fetichismo, defeitos raciais, escravos e, acima de tudo, acima de tudo: "Sho 'good
eatingin'. Naquele dia, completamente deslocado, sem poder andar com o outro, o homem branco, que me aprisionou sem dó, me afastei da minha presença, muito longe, e me fiz objeto. O que mais poderia ser para mim
senão uma amputação, uma excisão, uma hemorragia que salpicou todo o meu corpo com sangue negro?” (Fanon, 2008, p.112).
A reflexão de Fanon (2008) tem inspirado muitos estudos sobre a cultura visual, que investigam como a construção de imagens e representações raciais está ligada a formas de violência. Esses estudos questionam a maneira como as raças são representadas e como isso afeta a forma como as pessoas se veem e são vistas. Produtores culturais e ativistas têm criticado essas representações, e isso continua sendo debatido por pessoas que se identificam com diferentes raças e etnias. No centro dessas análises está a ideia de que a forma como representamos os grupos racializados é resultado de processos históricos de colonização e imperialismo, e que essas imagens continuam a alimentar desigualdades e violência na sociedade atual. As imagens, sejam fantasiosas ou consideradas parte da realidade, ajudam a manter estruturas de poder que afetam nossa forma de entender o mundo.
Para Fanon, a racialização está profundamente enraizada em discursos e imagens do passado colonial que continuam a influenciar a forma como as diferenças raciais são marcadas hoje. O primeiro aspecto desse processo é o que ele chama de "epidermização", ou seja, a forma como a cor da pele e a ideia de raça passam a definir as oportunidades e barreiras que as pessoas enfrentam ao longo de suas vidas. A visão de que o europeu é o modelo de ser humano, enquanto o negro é reduzido a um objeto ou estereótipo, é uma consequência direta desse processo (Faustino, 2013a; 2018c).
O segundo ponto é a internalização dessas ideias tanto pelo colonizador quanto pelo colonizado. Isso significa que as pessoas passam a se enxergar e a enxergar o outro de acordo com essa visão distorcida, criada pelo colonialismo, que divide o mundo em "branco" e "negro" de forma fixa e hierárquica. Essa dicotomia empobrece a forma como os indivíduos percebem a si mesmos e o mundo ao redor. A ideia de raça se torna uma barreira que impede o reconhecimento da humanidade mútua.
Além disso, essa racialização do branco está ligada a uma ideia de superioridade, na qual o branco é visto como o referencial universal de humanidade, enquanto o negro é desumanizado e visto como inferior. Esse processo de desumanização do negro faz parte de uma tentativa de manter a posição de poder do branco. Como resultado, ativistas e intelectuais negros e africanos têm mostrado que o racismo, apesar de ser uma criação dos brancos, afeta a todos. Para o negro, o racismo impõe uma identidade de "outro", e é a partir dessa posição que ele luta para construir sua própria identidade de forma ativa e resistente.